#57 Panorama da viabilidade de reciclagem

Lixo eletrônico, Resíduos de Equipamentos Elétricos e Eletrônicos (REEE) ou e-lixo são as designações em uso para abranger equipamentos elétricos e eletrônicos, descartados de forma integral ou parcial, em estado de inutilidade para seus proprietários. Esse tipo de resíduo vem experimentando um aumento do seu contingente, no contexto de uma tecnologia com novidades cada vez mais frequentes. O mercado, valendo-se das novidades, visa criar um comportamento consumista na população para atender à demanda criada (ECYCLE, 2018).

Diferente da lógica de produção antiga, hoje, os novos produtos eletrônicos inseridos no mercado chegam de forma instantânea em todas as camadas sociais. Um usuário comum de computadores, por exemplo, vê seu equipamento ficar obsoleto cada vez mais rápido, o que o impulsiona a trocar o seu aparelho na mesma proporção de tempo. Os equipamentos antigos se tornam lixo eletrônico (figura 1) e quase sempre não têm a destinação correta, podendo causar severos impactos ambientais (SILVA, 2010). 

Figura 1 – Lixo eletrônico metaforizando um ambiente natural.

Fonte: http://bit.ly/2JrFGsg 

Para compreender melhor o problema, se faz necessário entender como essa lógica funciona. A partir da Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX, percebeu-se os problemas decorrentes da industrialização e urbanização, própria do período: os impactos ambientais gerados se refletiam diretamente na saúde coletiva da época (BOTTOMORE e NISBET, 1980). Tais efeitos chegaram também ao Brasil. Desde então, como a parte majoritária das cidades brasileiras não normatizam a segregação de resíduos no momento da produção, dificulta-se uma solução para o lixo gerado (MUCELIN e BELLINI, 2008). Esses mesmos locais também possuem uma prática nociva de descarte final dos resíduos, sendo dispostos em terrenos baldios, margens de rodovias e até mesmo ambientes naturais (MOI, 2014).

A geração de lixo eletrônico, ao menos nas suas proporções atuais, tem como causa decisiva uma prática de mercado denominada obsolescência programada. Tal lógica é baseada numa validade dos produtos pré-determinada pelos seus fabricantes, independente dos cuidados de conservação do consumidor, na qual o intuito principal é forçar a compra de um novo produto para substituição. Diz-se que esse conceito surgiu entre 1929 e 1930, anos marcados pela denominada Grande Depressão. Devido à tal crise, o mercado se apoiou na prática a fim de aumentar o consumo de produtos e recuperar a economia. Caso símbolo dessa política foi a formação do Cartel Phoebus, criado para estabelecer um consenso entre os principais fabricantes de lâmpadas da Europa e dos Estados Unidos. A partir de então, as empresas envolvidas reduziriam a vida útil das lâmpadas de 2.500 para 1.000 horas (MACEDO, 2020).

Provando não se tratar de uma prática isolada, um outro caso emblemático ficou famoso pelo mundo, no qual um artista de Nova York comprou um iPod da primeira geração por US$ 500, mas viu seu aparelho ter um defeito na bateria 18 meses depois. Após a sua reclamação, a Apple (figura 2), empresa responsável pelo produto, declarou ser mais viável comprar um iPod novo ao invés de consertar o defeito. O caso gerou uma onda de protestos contra a prática da empresa que, por sua vez, acabou por ceder, realizando uma ação de substituição de baterias e oferecendo um serviço de extensão da garantia dos iPods por US$ 59 (MACEDO, 2020).

Figura 2 – Lixo eletrônico gerado por aparelhos da marca Apple.

Fonte: https://bit.ly/2WQiQNR 

A lógica de mercado visando esse tipo de consumo se consolidou a nível global, levando a uma produção estratosférica de lixo eletrônico. A International Solid Waste Association (ISWA) vem publicando relatórios anuais com números da produção de REEE pelo mundo. Conforme o relatório publicado por Forti e col.(2020), no ano de 2019, o planeta teve uma produção recorde de 53,6 milhões de toneladas de e-lixo. Esse número representa uma média de produção de 7,3 kg/habitante e, olhando somente para a Europa, esse número chega a 16,2 kg/habitante. O relatório também prevê uma produção de 74 milhões de toneladas desse resíduo ainda no ano de 2030. 

O conjunto de dados coloca o lixo eletrônico no patamar de tipo de lixo doméstico que mais cresce em quantidade no mundo, em decorrência do consumismo, da vida curta dos aparelhos e das escassas opções de conserto. Em se tratando de reciclagem, apenas 17,4% desse resíduo foi coletado e reciclado. No material não reciclado, ficam perdidos diversos materiais de elevado valor, como ouro, prata, cobre e platina, que poderiam ser reutilizados, mas acabam descartados ou incinerados (FORTI et al., 2020). 

Segundo um relatório apresentado no Fórum Econômico Mundial em Davos, o montante total do lixo eletrônico é avaliado em US$ 62,5 bilhões, valor similar ao Produto Interno Produto (PIB) do Quênia. Os maiores responsáveis pela geração de REEE são Austrália, China, União Europeia, Japão, América do Norte e Coreia do Sul. Tal relatório inclui somente o Brasil (figura 3) de todos os países falantes de língua portuguesa, dada a sua relevância entre os 11 países que mais recebe materiais eletrônicos descartados (ONU NEWS, 2019).  

Figura 3 – Gráfico das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) nos domicílios brasileiros.

Fonte: Forti e col. (2020).

Sabendo-se, então, das práticas geradoras do e-lixo, das suas estimativas numéricas recentes e dos seus principais motivos, pode-se perguntar o porquê de o problema ser deveras preocupante. Como supracitado, existem diversos impactos ambientais. Olhando-os de perto, pode-se destacar a problemática relacionada aos metais pesados. Fazendo-se uma análise do smartphone, por exemplo, amplamente popularizado pelo mundo, o aparelho contém diversos tipos de metais como cobre, ouro, chumbo, níquel, antimônio, zinco, berílio, tântalo, arsênico, mercúrio e columbita-tantalita (FORTI, 2019; VAL, 2020). Além disso, o plástico, presente na carcaça, possui petróleo bruto, gás natural e vários componentes químicos (VAL, 2020), como os clorofluorcarbonetos (CFCs) e retardadores de chama, sendo que a maioria desses materiais tem como destinação final os lixões (FORTI, 2019).

Os componentes supracitados do e-lixo possuem volatilidade e não são biodegradáveis. Eles contaminam a natureza, de fato, quando são aterrados ou incinerados. Decorrente dessas ações, podem ocorrer vazamentos, reações químicas e vaporização, por meio dos quais o solo, os aquíferos e o ar são contaminados, além de ocorrer a bioacumulação. Esse último fenômeno, se tratando de metais pesados, é tóxico para a vida em geral, inclusive os seres humanos, onde o efeito mais importante são os danos permanentes no sistema nervoso. Além disso, presentes em muito equipamentos, os retardadores de chama e os CFCs geram gases corrosivos ou tóxicos quando incinerados, e causam alterações na camada de ozônio, respectivamente (FORTI, 2019).   

Detalhar a história de um dos metais da composição dos smartphones é o suficiente para perceber um impacto socioambiental de grandes proporções: a columbita-tantalita, por exemplo, é extraída quase de forma integral na República Democrática do Congo. De acordo com organizações dos direitos humanos, nesse local, são encontrados trabalhadores que, sem muitas saídas, subsistem na mineração desse metal com menos de US$ 1000 por ano, além de terem condições sanitárias e de segurança no trabalho quase nulas (figura 4). Além do mais, a fauna local é afeta de forma direta, em especial os gorilas. Esses últimos animais ficam sem alimento, devido à destruição do ecossistema pela mineração, além de se tornarem fonte de carne para os mineradores. Para agravar a situação, a ONU afirma que os grupos envolvidos na comercialização do minério são parte de uma guerra civil perdurante no país (VAL, 2020).

Figura 4 – Menino trabalhando em mineração, sem nenhuma proteção, na República Democrática do Congo.

Fonte: https://bit.ly/3nUl9ve 

Por isso, embora relativamente recente, os problemas relacionados aos REEEs parecem crescer de forma preocupante. Há evidências o bastante para estender a responsabilidade de gestão dos resíduos a contextos específicos de empresas, instituições e sociedade comum, ao invés de se restringirem ao cumprimento de protocolos generalistas (CELINSKI et al., 2011). Todos esses grupos precisam assumir o compromisso de uma gestão consciente, nas proporções cabíveis a cada um, mas procurando atender a todos os ciclos envolvidos no processo de forma correta, em consonância (no Brasil) com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) (SILVA, 2010), em específico as Normas ABNT NBR 16156/2013, e Resolução CONAMA nº 401/2008. 

No panorama mundial, nota-se o avanço da Europa em relação aos demais países quanto à legislação sobre e-lixo, destacando-se também a sua maior quantidade de reciclagem e coleta desse material. Seguem o mesmo caminho a América do Norte e parte do continente Asiático. Por outro lado, a maioria dos países africanos, uma outra parte da Ásia e o Caribe são exemplos de países cuja legislação nem ao menos aborda o tema (BALDÉ et al., 2017). Entretanto, a legislação em si não garante o seu cumprimento, além de que muitas dessas leis estão incompletas quanto à ampla definição de lixo eletrônico (FORTI, BALDÉ e KUEHR, 2018).

Por isso, ações concretas são a única maneira efetiva de exemplificar políticas aptas a abranger a reutilização, a reforma e a volta do lixo eletrônico para o sistema produtivo. O equipamento eletroeletrônico deve ser pensado de maneira a aumentar a sua durabilidade e ser de fácil reparo, fatores importantes de serem cobrados numa legislação, que também deve ter enfoque no aprimoramento do processo produtivo, tanto no sentido de aumentar a eficiência no uso de recursos quanto de recuperar metais valiosos na reciclagem, como ouro, prata, cobre, paládio, ferro e alumínio (FORTI et al., 2020).

A maior prova da necessidade dessas ações é a pequena taxa atual de coleta dos REEEs. Fazendo-se a ressalva, é claro, dos números supracitados serem de fontes oficiais, podendo ser maiores, principalmente, em países cuja reciclagem desses materiais seja realizada, em sua maioria, pelo setor informal. Apesar de ser um ponto positivo, também possui o ônus do manuseio quase sempre inadequado do e-lixo nesse mercado, afetando a saúde dos trabalhadores da área (FORTI et al., 2020).

Por isso, o governo pode intervir nesse problema de maneira a gerar empregos consonantes com a segurança e regularidade, em detrimento da atuação do mercado informal. Um exemplo deveras ilustrativo é a Nigéria, cujo mercado informal abrange 100 mil pessoas na coleta de e-lixo. No país, há um projeto de investidores para a criação de empregos formais para todos esses trabalhadores. O investimento seria compensatório, pois uma tonelada de telefones celulares, por exemplo, possui 100 vezes mais ouro do que uma mesma quantidade de minério aurífero. Além do bônus econômico, a recuperação de metais valiosos mitigaria o impacto socioambiental da mineração em diversos países, como China e República Democrática do Congo (FORTI et al., 2020).   

Quanto ao Brasil, sua legislação contém a especificidade tão necessária na gestão do lixo eletrônico: trata-se da Lei Federal n° 12.305, de 2 agosto de 2010, referente à Política Nacional de Resíduos Sólidos (onde estão compreendidos os equipamentos eletroeletrônicos). Uma parte importante deste documento é o artigo 33, pois define os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes como “obrigados a estruturar e implementar sistemas de logística reversa, […] de forma independente do serviço público de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos.”. Todavia, a maior parte dos estados nacionais (figura 5) não detém uma legislação específica para a gestão do lixo eletrônico (CELINSKI, 2011).

Figura 5 – Lixo Eletrônico metaforizando o mapa do Brasil.

Fonte: https://bit.ly/2WPKMSf 

Não suficiente para resolver os desafios impostos pelo lixo eletrônico no Brasil, a lei 12.305/2010 foi complementada pelo Acordo Setorial para a Logística Reversa de Eletroeletrônicos. Considerando a escassez de empresas com um sistema de logística reversa eficaz também para os consumidores, o acordo estabelece metas e cronogramas específicos elaborados com antecedência, bem como aborda os trâmites burocráticos que garantem o cumprimento do Acordo (GREEN ELETRON, 2019). 

Dentre seus objetivos está: atingir, dentro de 5 anos, o percentual de 17% do lixo eletrônico com coleta e destinação adequados, bem como a iniciação de cinco mil pontos de coleta espalhados por 400 municípios. Além disso, o documento exige das empresas um plano de sensibilização dos consumidores quanto à importância da gestão do lixo eletrônico. Por último, normatizou-se a junção das empresas para um sistema coletivo, a fim de gerir os REEEs com o menor custo possível (GREEN ELETRON, 2019)  

A problemática do lixo tecnológico é, como todas as causas ambientais, um problema de dimensão continental. Hoje, vive-se numa sociedade globalizada, onde procura-se capitalizar o lucro e socializar o prejuízo. Ironicamente, quando se trata de um prejuízo ambiental, este já é socializado antes mesmo de se intencionar. Tanto capitalizar o lucro quanto socializar o prejuízo são injustos, de forma especial o segundo, pois as camadas sociais que menos sofrem com um caos socioambiental são justamente as detentoras do lucro. No caso específico do lixo eletrônico, dada as evidências, a gestão negligenciada desse resíduo parece acontecer de forma deliberada, visando-se obter o máximo ganho a qualquer custo.

Dessa forma, somente a coalizão entre governo, sociedade civil e empresas conseguirá mitigar os efeitos sociais e ambientais do lixo eletrônico nos próximos anos. A sociedade civil, no papel de fiscalizar o cumprimento das leis e cobrar ações específicas do governo nos problemas de cada localidade. Já o governo precisa representar a população e executar ações concretas que objetivem uma gestão correta dos resíduos, além de uma ampla sensibilização da sociedade. Por sua vez, as empresas precisam respeitar as leis vigentes, serem transparentes com a sociedade e implementarem a política do desenvolvimento sustentável. Gerir o lixo eletrônico com responsabilidade é cuidar de si, do próximo, e do planeta.

Referências

ABNT, NBR. 16156: 2013. Resíduos de Equipamentos Eletroeletrônicos. Requisitos para a Atividade de Manufatura Reversa. São Paulo: ABNT, 2013.

BALDÉ, C.P., FORTI, V.,GRAY, V., KUEHR, R., & STEGMANN, P. The Global E-Waste Monitor 2017. Bonn/ Genebra/Viena: United Nations University, 2017.

BOTTOMORE T., NISBET R. História da análise sociológica. Rio de Janeiro: Zahar; 1980.

BRASIL. Lei n° 12305/2010. “Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências.” Diário Oficial da União. Publicação DOU, de, v. 3, n. 08, 2010.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Resolução CONAMA nº 273, de 29 de novembro de 2000. Estabelece os limites máximos de chumbo, cádmio e mercúrio para pilhas e baterias comercializadas no território nacional e os critérios e padrões para o seu gerenciamento ambientalmente adequado, e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=589&gt;. Acesso em 28 dez. 20.

CELINSKI, Tatiana Montes, CELINSKI, V. G.; RESENDE, H. G. Perspectivas para reuso e reciclagem do lixo eletrônico. In: II Congresso Brasileiro de Gestão Ambiental. 2011.

FORTI, V., BALDÉ, C. P., &KUEHR, R. E-Waste Statistics Guidelines on Classification, Reporting and Indicators. Bonn: ViE–SCYCLE, United Nations University, 2018.

______________________________ and BEL, Garam, The Global E-waste Monitor 2020: Quantities, flows and the circular economy potential. Bonn, Geneva and Rotterdam: United Nations University, 2020.

____________________. O crescimento do lixo eletrônico e suas implicações globais. Panorama Setorial da Internet, n.4, ano 11, 2019.

GREEN ELETRON. O que é o Acordo Setorial para a Logística Reversa de Eletroeletrônicos?, 2019. Disponível em: < https://www.greeneletron.org.br/blog/o-que-e-o-acordo-setorial-para-a-logistica-reversa-de-eletroeletronicos/&gt;. Acesso em: 23 dez. 20.

MACEDO, Roberto F. Obsolescência programada? Jusbrasil, 2020. Disponível em: <https://ferreiramacedo.jusbrasil.com.br/artigos/854751871/obsolescencia-programada&gt;. Acesso em 24 dez. 20. 

MOI, Paula Cristina Pedroso et al. Lixo eletrônico: consequências e possíveis soluções. Connection line-revista eletrônica do UNIVAG, n. 7, 2014.

MUCELIN, Carlos Alberto; BELLINI, Marta. Lixo e impactos ambientais perceptíveis no ecossistema urbano. Sociedade & natureza, v. 20, n. 1, p. 111-124, 2008.

ONU NEWS. Valor do lixo eletrônico global chega a US$ 62,5 bilhões, revela estudo, 2019. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2019/01/1656772&gt;. Acesso em: 23 dez. 20.

SILVA, J.R.N. Lixo eletrônico: um estudo de responsabilidade ambiental no contexto no Instituto de Educação Ciência e Tecnologia do Amazonas–IFAM Campus Manaus Centro. In: Congresso Brasileiro de Gestão Ambiental, v.1, 2010.

VAL, Mariana. A história do e-lixo: O que acontece com a tecnologia depois que é descartada. Gizmodo Brasil, 2020. Disponível em: < https://gizmodo.uol.com.br/a-historia-do-e-lixo-o-que-acontece-com-a-tecnologia-depois-que-e-descartada/&gt;. Acesso em 24 dez. 20.